quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Arte, liberdade de expressão e a Igreja do Futuro

Um dos meios mais significantes de expressão é a arte. E quando me refiro à arte, pretendo abarcar todo o leque de manifestações artísticas, desde as artes cênicas, passando pelas artes plásticas, pela música, literatura, etc.

Ao dotar o ser humano de sensibilidade artística, o Criador estava imprimindo nele um dos Seus traços mais marcantes. Deus é o Supremo Artista. Toda a Sua criação é uma grande obra de arte.

Em Efésios 2:10, o apóstolo Paulo diz que “somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas”. A palavra grega traduzida como “feitura” é poiema, que também poderia ser traduzida por “poema”. Que interessante: somos o poema de Deus. Somos uma expressão artística de Deus.

João Calvino, o grande reformador protestante do século XVI, defendia que a arte é um dom de Deus, e que deveria ser usada para glorificá-Lo. E mesmo quando a arte se rebaixa para tornar-se o instrumento de mero entretenimento para o povo, Calvino afirma que este tipo de prazer não lhe deveria ser negado. Quanto mais o homem se aprofunda nas “artes liberais” e investiga a natureza, mais se aproxima “dos segredos da divina sabedoria”.

Sobre isso, escreveu Bavinck (1854-1921):

“A arte também é um dom de Deus. Como o Senhor não é apenas verdade e santidade, mas também glória, e expande a beleza de Seu nome sobre todas as Suas obras, então é Ele, também, que, pelo Seu Espírito, equipa os artistas com sabedoria e entendimento e conhecimento em todo tipo de trabalhos manuais (Ex 31.3; 35.31). A arte é, portanto, em primeiro lugar, uma evidência da habilidade humana para criar. Essa habilidade é de caráter espiritual, e dá expressão aos seus profundos anseios, aos seus altos ideais, ao seu insaciável anseio pela harmonia. Além disso, a arte em todas as suas obras e formas projeta um mundo ideal diante de nós, no qual as discórdias de nossa existência na terra são substituídas por uma gratificante harmonia. Desta forma a beleza revela o que neste mundo caído tem sido obscurecido à sabedoria, mas está descoberto aos olhos do artista. E por pintar diante de nós um quadro de uma outra e mais elevada realidade, a arte é um conforto para nossa vida, e levanta nossa alma da consternação, e enche nosso coração de esperança e alegria.”

E quando falo de arte, não endosso a pretensa distinção entre arte cristã e arte pagã. Concordo com Hermisten Maia Pereira da Costa, que em seu belo texto intitulado “O Espírito Santo na Vida Intelectual e Artística” afirma: “A dicotomia entre “arte cristã” e a “arte pagã” tem contribuído para que os cristãos muitas vezes se distanciem das expressões artísticas, rotulando-as precipitadamente de pagã, sem o devido critério. Por outro lado, e isto é o mais grave, com o nome de arte cristã tem-se pretendido criar um suposto isolacionismo cultural que, na realidade tem sido, em geral, de baixíssima qualidade e, o pior: supostamente para a glória de Deus. Muitas vezes em nome de uma “arte cristã” estamos patrocinando uma “reserva de mercado”, onde a sensatez e o senso crítico não têm vez, visto que neste caso, o que conta é o sentimento, como que este, por si só estivesse acima de qualquer juízo de valor.”

Michael S. Horton nos adverte com precisão: “Se vamos escrever literatura ‘cristã’ e criar obras de arte e música distintamente ‘cristãs’, deverá ser feito de modo tão plenamente persuasivo intelectualmente e artisticamente que os que não são cristãos ficarão impressionados por sua integridade – mesmo que eles discordem”.

É o próprio Deus quem capacita pessoas a se expressarem através das artes. Lemos em Êxodo, que Deus escolheu dois homens, Bezalel e Aoliabe, enchendo-os de “habilidade, inteligência e conhecimento, em todo artifício, para inventar obras artísticas, para trabalhar em ouro, em prata e em bronze, em lavramento de pedras de engaste, em entalhadura de maneira, para trabalhar em toda obra fina (...) Encheu-os de habilidade, para fazerem toda obra de mestre, até a mais engenhosa, e a do bordador, em estofo azul, em púrpura, em carmesim e em linho fino, e a do tecelão; toda sorte de obra, e a elaborar desenhos”. Uau! Quanta inspiração Deus deve ter dado àqueles homens!

Porém, de nada adiantaria dar-lhes inspiração, se não lhes fosse dada a liberdade necessária para expressá-la.

Durante a Ditadura Militar, muitos artistas brasileiros foram exilados, porque suas obras eram consideradas subversivas. Um desses artistas foi Caetano Veloso, que amargou um período de exílio na Inglaterra. Alguns dos grandes compositores brasileiros tiveram que expressar sua indignação através de músicas com sentido subliminar. Chico Buarque, por exemplo, tinha suas músicas sistematicamente observadas. Uma de suas músicas com duplo sentido foi “Apesar de Você”:

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão.
Viu?
Você que inventou esse Estado
Inventou de inventar
Toda escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar o perdão.

Apesar de você
amanhã há de ser outro dia.
Eu pergunto a você onde vai se esconder
Da enorme euforia?
Como vai proibir
Quando o galo insistir em cantar?
Água nova brotando
E a gente se amando sem parar.

Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros. Juro!
Todo esse amor reprimido,
Esse grito contido,
Esse samba no escuro.

Você que inventou a tristeza
Ora tenha a fineza
de “desinventar”.
Você vai pagar, e é dobrado,
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar.

Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Ainda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria.

Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença.

E eu vou morrer de rir
E esse dia há de vir
antes do que você pensa.
Apesar de você

Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia.

Como vai se explicar
Vendo o céu clarear, de repente,
Impunemente?
Como vai abafar
Nosso coro a cantar,
Na sua frente.
Apesar de você

Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Você vai se dar mal, etc e tal,
La, laiá, la laiá, la laiá…….

Naquele período tenebroso da nossa história, todas as publicações, livros, programas de TV e rádio, eram obrigados a passar pelo crivo de um grupo de censores. Os critérios eram subjetivos e iam desde os aspectos ideológicos e políticos, até os relacionados a costume. Os censores indicavam os trechos, e muitos casos, a obra toda que não poderia ser divulgada. Assim, algumas obras ficavam desfiguradas e sem sentido.

Muitos filmes produzidos naquela época nunca chegaram à telas. Políticos e pensadores foram encerrados atrás das grades. Artistas foram expulsos do País. Sem contar aqueles que simplesmente desapareceram, sem deixar vestígios.

Grande parte da nata intelectual e artística do Brasil ficou impedida de se expressar. Todos perdemos com isso.

A igreja cristã, juntamente com seus líderes, deve estimular a arte e a sua livre expressão.

Se houvesse algum tipo de censura religiosa nos tempos bíblicos, provavelmente muitos dos salvmos teriam sido editados ou simplesmente descartados. E certamente não teríamos o livro do "Cântico dos cânticos", cujo conteúdo é extremamente erótico, mas nem por isso, deixa de ser espiritual.

Nenhum líder religioso tem o direito de promover qualquer tipo de censura. Em vez disso, deve oferecer aos fiéis instrumentos, para que saibam apreciar e ao mesmo tempo discernir a mensagem que o artista está tentando passar. E aqui vale a admoestação de Paulo, o apóstolo: Apreciar tudo, e reter o que for bom.

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